Os leitores e as leitoras mais pacientes sabem que não costumo comentar as opiniões do jornal, porque opinião, bem, é opinião. Mas abro a segunda exceção em pouco tempo pelo fato de as mensagens sobre o editorial “Condenação de Bolsonaro foi justa, mas pena é exagerada” terem levantado questões factuais.
Um leitor pergunta: “Os editorialistas são juristas, para saberem dosimetria? E pior: baseado em que a Folha defende prisão domiciliar para Bolsonaro?”.
A Folha julgou “difícil explicar à população por que o STF determinou 27 anos e três meses de prisão ao ex-presidente”. O jornal poderia ter se esforçado para deixar claro quanto seria, para a Folha, a pena justa, e se, “com base na premissa de que abolição do Estado de Direito e golpe” seriam “na prática um mesmo crime, e não dois”, o suposto exagero estaria sanado.
A “sentença maior que muitas aplicadas a homicidas” recorre a um argumento usado por bolsonaristas que é genérico demais (a pena começa variando de 6 a 20 anos). Além disso, compara-se a sentença aplicada a condenados por um tipo penal àquela recebida por um réu que foi condenado por cinco crimes, não um. Não custaria, ainda, lembrar que há progressão penal no Brasil, com exemplos concretos e célebres inclusive entre homicidas.
Para o leitor Gustavo Meirelles, 49, o editorial “parte de um diagnóstico correto —a legitimidade da decisão do Supremo—, mas acaba se fragilizando pela insistência em relativizar a gravidade da conspiração contra a democracia”.
“Ainda mais problemática é a sugestão de prisão domiciliar em função da saúde do ex-presidente. Essa condição nunca o impediu de exercer cargos, disputar eleições, viajar ou comandar motociatas. Trazê-la agora como argumento enfraquece a mensagem de que a lei vale para todos.”
Um leitor bem-humorado resumiu a questão da seguinte maneira: “Queridões, que olhar é esse? Olhar plural?”.
Paradoxalmente, a pergunta também faria sentido entre os questionamentos feitos pelo leitor Luiz Tálamo, 45, sobre a cobertura do atentado contra o ativista conservador Charlie Kirk. Para ele, “a Folha sempre desumaniza a direita”.
“Um ativista conservador, que sentava para discutir com pessoas de visões opostas e era aberto ao diálogo, foi morto com um tiro no pescoço. A Folha dá ênfase em criticar a vítima de crime de ódio (inclusive a esquerda dos EUA e brasileira estão comemorando abertamente) em vez de criticar o crime em si. Quantas vezes a Folha publicou a frase ‘extrema direita’ e quantas vezes publicou ‘extrema esquerda’?”
Do outro lado do espectro ideológico, a Folha e os concorrentes eram criticados por haverem traduzido o texto do The New York Times em que o jornalista Ezra Klein afirmava que Kirk, apoiador de primeira hora de Donald Trump, “fazia política do jeito certo”.
A morte de Charlie Kirk produziu um impacto nos EUA cuja dimensão ainda está por ser medida. O vídeo de sua morte inundou as redes. Os frames desse registro foram parar nas capas da Folha, enquanto concorrentes diretos e jornais estrangeiros de prestígio escolheram não destacar as imagens. Veículos dos EUA discutiam justamente a velocidade com que o vídeo havia se espalhado e chegado a crianças.
“Reconheço, como jornalista, a importância da notícia no panorama atual e o valor da imagem numa sociedade pautada pelo momento sensacional e efêmero embalado pelas redes sociais. Mas fotos como essas não podem ter como outro motivo senão o sensacionalismo barato, sem pensar na sensibilidade dos leitores de todas as idades”, afirma Marcelo Paes, 47. Para ele, a cena “deveria, no máximo, estar inserida no interior da notícia e após o aviso de ‘imagem forte’ ou coisa parecida”.
A ubiquidade da imagem, no entanto, coloca em xeque a curadoria dos jornais. David Bauder, repórter da Associated Press, observou que houve cuidado dos meios tradicionais para não mostrar o momento, preferindo imagens anteriores à morte e do pânico da plateia após o assassinato. “Em termos práticos, porém, pouco adiantou. Milhões de pessoas assistiram. (…) Ilustrou como o papel de ‘gatekeeper’ das organizações de notícias mudou.”
Para Marcelo, porém, a questão vai além. “Acho que a mídia ainda tem a responsabilidade de dar o bom exemplo, não necessariamente não mostrando, mas colocando barreiras. Pode ser uma visão à moda antiga? Pode ser, mas quem pauta o que é correto não pode ser a Meta, Amazon, Google, ByteDance etc., que vivem (por enquanto) num território meio nebuloso.”
Tendo a defender a publicação das imagens por seu aspecto jornalístico, mas a discussão sobre sensibilidade e sensacionalismo é mais necessária do que nunca. Como publicar, nesses casos, é tão importante quanto o que publicar. Talvez ainda seja uma vantagem da mídia tradicional oferecer ao leitor a possibilidade de escolher não ver imagens de um assassinato em tempo real.
Kirk também representava outra mudança na mídia, como lembra artigo no The Hill. Ele “esteve na vanguarda da conquista de espaços midiáticos independentes pelo movimento conservador”, com podcasts e vídeos consumidos aos milhões. “A atual safra de influenciadores do MAGA — alguns dos quais agora aparecem em coletivas de imprensa na Casa Branca— são herdeiros do ecossistema que ele construiu.”
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